quarta-feira, 10 de junho de 2009

NIRVANA & SAMSARA

O gosto acre na boca é só o início
Do Samsara, da roda do suplício
Que tritura carcaças inauditas,
Empaladas ao pé das palafitas.

No silêncio insulso do interstício
Que separa esperança do cilício,
Partilho a solidão dos eremitas,
Entregue a Sorte às vastidões malditas.

Se erro nos labirintos da Verdade,
Quando me procuro à sombra do Nada,
Encontro-me cindido e fragmentário.

A busca do prazer é veleidade.
Com a pena em ilusão mergulhada,
Tisno as letras de meu próprio obituário.
Thiago Henrique Darin.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

VITAE MORS CONSENTANEA

Oh! A vida é um abismo! Mas fecundo!
Antero de Quental

Exércitos e tropas, hostil hoste,
Algozes ou invencível armada,
Provaram ignomínia e derrocada
Nesta testilha que ora afronta a Sorte.

Quer na velhice, quer na altivez forte,
Em que o gládio da destra inabalada
Desfalece e, adstrito a quase nada,
Detém-se à vista da sua própria morte.

Eis, enfim, o que somos: o guerreiro
Do infindo absurdo, do caos rotundo,
Que da vendetta o faz rude herdeiro,

Maldiz a Vida como execra o Mundo,
À aba do inóspito desfiladeiro,
Ao umbral d’último arquejo profundo.

Thiago H. Darin.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Crime e Castigo

"No hay perdón para los actos de odio. El puñal que se clava en nombre de la libertad, se clava en el pecho de la libertad”. José Martí"

Na tragédia Antígona, do dramaturgo grego Sófocles (496 a.C.–406 a.C.), a protagonista homônima se vê diante de um óbice: deseja enterrar o corpo de seu irmão Polinices, tido como traidor da cidade de Tebas, mas é impedida pelo rei Creonte, que se nega a lhe conceder as exéquias e a condena à morte. O pano de fundo em que se desenrola a história é o embate entre os direitos natural e positivo, a contenda entre o costume divino, oral e não-escrito, a diké (que encontra correspondência no termo latino justitia, e qualquer semelhança com o vocábulo português justiça não será mera coincidência), e a lei humana, escrita e urbana, a nómos. Representa o choque entre dois mundos, a passagem entre duas cosmologias: a transição entre o mundo homérico do génos, dos clãs que dominavam a Grécia antiga, e o mundo político da cidade-Estado helênica, a pólis.
Feito o intróito, milhares de anos se passaram e o enredo assume uma versão atual, com personagens bem tupiniquins. Fomos acossados, nessas últimas semanas, pelo espectro de uma suposta revisão da famigerada Lei da Anistia, “promulgada” em plena vigência da ditadura militar. Responsável pelo retorno dos exilados políticos brasileiros, tanto civis como militares de esquerda, e pela impressão de uma abertura democrática “lenta, gradual e segura”, a Lei no 6.683 de 28 de agosto de 1979 pregava que todos os crimes cometidos por motivação política entre 1961 e aquele ano – excetuando-se os de seqüestro, terrorismo, etc. – seriam, a partir de então, anistiados. Inacreditavelmente, os crimes perpetrados pelos carrascos do governo autoritário também seriam perdoados. Fez-se então um só peso e uma só medida: vítima e algoz seriam absolvidos; torturado e torturador ficariam em pé de igualdade.
O mundo certamente seria um lugar melhor sem essas duas curiosas personagens, como mais fácil seria arrebanhá-los num só plantel. À época de sua negociação, coisas aparentemente imiscíveis foram reduzidas ao mesmo estatuto: o pau-de-arara, por ironia, passou a valer o mesmo que uma passeata estudantil; sessões de choque adquiriram o mesmo valor de barricadas ou de canções de protesto. Em verdade, era muito fácil divisar o panorama que se deslindava: uma casta dominante que usa de sua hegemonia cultural e ideologia como ferramenta de inversão da realidade, cientistas políticos e jurídicos obsoletos, um sem-número de militares cujas mãos rubras de sangue silenciaram o direito de um povo de erigir um Estado democrático de Direito.
Assim, diante dessa ignomínia, foi preciso que o juiz espanhol Baltasar Garzón, responsável pela prisão de diversos ditadores latino-americanos, entre eles o chileno Augusto Pinochet, viesse ao Brasil para reiterar que crimes de lesa-humanidade, em cujo rol as atrocidades cometidas pelo governo de exceção entre as décadas de 60 e 70 perfeitamente se encaixam, não merecem a honra da anistia. Temos, assim, a impressão de que os assuntos internos de nosso país sempre sofrem a ingerência de outros povos, de que somos alheios ao nosso destino e despojados de nossa própria terra, que não temos autonomia em nossas próprias decisões. Essa sensação de alienação é, de certa forma, sustentada por duas situações: o fato de outros países que viveram sob governos despóticos entrarem em um processo de revisão de seu passado. Chile e Argentina, por exemplo, vêm julgando os responsáveis por crimes de tortura e assassinatos realizados por regimes militares em seus países; a outra é um elemento que parece ser constitutivo do “espírito” brasileiro: a passividade, em contraposição ao pacifismo. A primeira chafurda na inércia, no conformismo, conditio sine qua non da violência; o último se sustenta pela ação e pelo poder de mobilização. Esse caráter estático presente na vida nacional aparentemente é fomentado pela ala majoritária do atual governo, do qual poucas vozes dissonantes se destacam. Entre elas está a dos ministros da Justiça, Tarso Genro, e dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi – paladinos de uma revisão do ardil maquiavélico – logo sufocada pela cúpula governista e por setores reacionários das Forças Armadas.
Qual seria, portanto, a melhor atitude a se tomar diante de uma injustiça? Qual o limite da autoridade de um governo sobre o poder da consciência individual? Enfim, qual o dever do cidadão justo perante um Estado iníquo? A parcimônia e a subserviência, companheiras do ressentimento e da vingança? Ou o senso de justiça, o de distribuir a cada qual o seu devido quinhão? Deixar de abrir os arquivos, ou mesmo de visitar os “porões” da ditadura, numa clara condescendência aos ditames de um regime que parece encontrar no atual certa conivência, não nos ensinará uma lição sobre o que realmente somos ou sobre o que queremos. Pertenço a uma geração que já respirava a insinuante brisa da abertura, mas que, por isso mesmo, deseja sempre revisitar a efeméride de nossos antepassados, de cobrar que as injustiças cometidas em tempos pregressos sejam enfim expurgadas. Afinal, é um desejo justo: o direito de memória. Somos, mesmo que não por força do destino, filhos de Antígona, condenados a uma herança maldita. Entre rostos evanescentes, muito embora visíveis, somos instados, a exemplo do príncipe Hamlet diante do fantasma de seu pai, a dar feição também aos seus sofrimentos. Se quisermos apontar soluções ao presente, temos o dever de encarar nossa história com todas as suas contradições e de enterrar nossos mortos, sob pena de nossos direitos serem apenas souvenires à exposição em um antiquário.
(Artigo publicado em setembro de 2008, em Palmas.)










Thiago H. Darin

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Aos meus 27 Anos

“Un soir, j’ai assis la Beauté sur mes genoux. – Et je l’ai trouvée amère. – Et je l’ai injuriée.
Arthur Rimbaud.

As mãos, trêmulas, tateiam o nada
A face senil, pálida de medo,
O pulso galopando em disparada
Anunciam-me a pena do degredo.

“Pagai uma moeda ao grão-barqueiro”,
Disse-me o Tempo, quimera de séculos
Ante a imagem do maldito estaleiro
Dei-lhe a vida como se fora um óbolo.

Ah! Sou mesmo um títere do destino,
Que é dor, e a esperança, desatino.
Não vale um jovem noção de juventude.

No segundo entre a sístole e a diástole
Meu coração se prostra a Mefistófeles
Qual Fausto, perante a decrepitude.
Thiago Henrique Darin.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O fim está chegando

Sejam todos bem vindos ao fim. Não é um fim com maiúscula, só um fim, porque cada coisa tem o seu e nenhum é melhor do que outro. Todos encerram, marcam, definitivamente, o início de um novo caminho ou a impossibilidade de caminhar da mesma maneira novamente.
Com o fim chegando, não havemos de nos preocupar com futilidades, pois ele nos faz práticos em relação às atitudes que nos trazem felicidade. Conserve ao máximo seus sorrisos, mantenham seus rostos joviais e alegres. Nada de alegria insana, mas da boa e simples de saber-se vivo ao acordar e, cansado e agradecido, chegar o cansaço que leva ao descanso.
No fim só iremos querer ter feito mais. Um pouco mais. Um suspiro que seja é lucro. Todos os bons dias cotidianos que negamos farão falta e iremos querer recuperá-los. Não há como, pois o fim traz em si a certeza de que não há retorno. Os números se adiantaram à frente de nossa vida. De repente havia a preocupação com a quilometragem do carro, com o rendimento da poupança, com guardar parte do salário e sem perceber, ensimesmados, nao vimos o desfile de pessoas, riquezas, corações à nossa volta enquanto olhávamos um extrato bancário ou documento.
O fim vem chegando. Agora, certamente, não é hora de desespero. Ele que sempre devagar se aproximava que nos esquecemos dele, está quase agora a tocar-nos o ombro. Não, não é hora para ter medo. É hora de, com maturidade e naturalidade, olharmos em seus olhos sabendo que o tudo que fizemos, que talvez agora consideremos pouco, foi o melhor, o melhor que podíamos fazer com o aprendizado que tínhamos. O ensaio da Vida é a própria peça teatral, o espetáculo foi feito. Sem lágrimas, mas com um sorriso feliz, seguro de tudo que fizemos, agora, o vemos e até o esperamos. Ele está perto. Não está feliz nem triste, faz o que tem que fazer e o faz sempre. Alcança a todos em todos os lugares. Não há ninguém que dele escape.
Pronto, chegou, não há mais quase espaço entre nós. Está quase a tocar-nos o ombro com sua face séria. Após tocar-nos leva-nos poucos passos adiante em direção a uma porta que tem alguns adornos muito bonitos em sua estrutura e superfície envernizada. Começa a abri-la enquanto esperamos, agora sim, um pouco nervosos, para ver o que há por detrás. Repentinamente começamos a enxergar outra porta. Agora é de vidro, um pouco embaçado. Poucas coisas se distinguem como silhuetas ao fundo, deixando entrever apenas imagens do que, talvez, seja o que imaginamos do outro lado. Solta nosso braço e com uma voz calma, quase sussurrante diz ao nosso ouvido o que parece ao mesmo tempo uma ameaça e um incentivo: "Agora vou-me embora. De agora em diante é com você". Nada mais sai daquela nebulosa voz enquanto a figura vira-se e vai embora. Agora podemos distinguir um relevo de vidro liso na porta. Está escrito 2009. Agora conscientes da nossa solidão, resta-nos os próximos passos. É mais um ano que se inicia
Everton de Almeida Oliveira
Jornalista

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Papai Estado, tende piedade de nós

Diziam: “O Estado não deve intervir no mercado”. E acrescentavam: “O mercado é que tem que se auto-regular”. Afirmavam ainda: “O governo deve deixar o mercado livre”. Também alardeavam: “O Estado não deve ditar os rumos da economia”.
Frases como as transcritas acima eram repetidas e defendidas, nos quatro cantos da Terra, por empresários, banqueiros, políticos e, principalmente, por economistas, aqueles sábios de plantão com passagem por Harvard ou por Princeton. Diziam eles que a mão do Estado na economia era uma erva daninha, um estorvo, um atraso. Detalhe: isso em tempos de céu de brigadeiro, em tempos de bonança, em tempos em que os cofres do Banco Mundial e do FMI estavam abarrotados de dinheiro, oriundo, sobretudo, dos miseráveis do Terceiro Mundo (latino-americanos, africanos e asiáticos).
Mas, como diria Drummond, e agora, José? Agora, parece que, realmente, a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu e a noite esfriou, conforme dito pelo mestre modernista. Onde estão os economistas e suas fórmulas mágicas neste momento de quebradeira generalizada, de empresas em estado de falência e de empresários em insolvência? Onde estão o Armínio Fraga, o Mailson da Nóbrega, o “Papa” Delfim Netto? Onde eles estão para nos socorrer? Que tal invocarmos o espírito do Roberto Campos para ele nos trazer o antídoto para esse mal?
O que vemos hoje? Vemos empresários passando o chapéu, implorando ao papai Estado para socorrê-los. “Ah, se não formos socorridos, teremos de demitir milhares e milhares de pessoas. Se o senhor, papai Estado, não nos ajudar, nós não iremos mais pagar impostos”. Isso não é chantagem de menino mimado?
Mas, afinal, o Estado não deveria ficar de fora da economia? Não deveria ser um mero coadjuvante, apenas um indutor de mecanismos que fizessem as empresas crescerem? Não. Isso era e continua sendo, mais do que nunca, uma falácia. Essa história de auto-regulação e de liberdade de mercado só é boa para os mega-investidores, para os grandes empresários, pois, com o chamado Estado mínimo, eles podem barganhar o que quiserem. Barganham perante os pobres trabalhadores, ameaçando-os de demissão; barganham perante os grandes bancos, pois são clientes mais que preferenciais, sendo bajulados e paparicados; barganham, principalmente, perante o próprio Estado. Conseguem, por exemplo, rios de dinheiro do BNDES, alegando que criarão empregos, que aumentarão a arrecadação, que gerarão divisas, esses pontos comuns que ouvimos e aos quais nos habituamos desde longa data. Os investidores e empresários são, na verdade, como meninos de pirulito na boca fazendo cena diante do pai.
Até mesmo nos Estados Unidos, o ainda país mais rico do mundo, a situação parece catastrófica. Estamos assistindo a uma fila de pedintes na Casa Branca, no Senado americano e no escritório do futuro presidente Barack Obama. A GM e a Ford, por incrível que pareça, estão com as mãos estendidas implorando socorro estatal, após cortarem milhares de vagas de emprego e de ameaçarem cortar ainda mais. Como o resto do mundo tenta imitar os estadunidenses, a coisa se repete por aqui. A Vale do Rio Doce já pôs na rua mais de mil trabalhadores e já vem com um discurso ameaçador de que terá de cortar mais pessoal em razão da crise. Há mesmo necessidade de mais demissões? Aliás, as mais de mil demissões não foram um exagero? Ninguém pára para pensar nisso. O que se ouve é: “Nossa! A situação está feia. Até a Vale está demitindo”.
É bom lembrar que a Vale está hoje nas mãos da iniciativa privada por causa do discurso falacioso do Estado mínimo, do Estado enxuto, pregado e levado a cabo no governo FHC, sendo vendida por um preço ínfimo e, ainda por cima, fiado. Para se ter uma idéia, o lucro da Vale em 2007 foi maior do que o preço pelo qual ela foi arrematada.
Por falar em FHC, essa sigla lembra fórmulas físicas e químicas, como dizia a mídia no início do seu primeiro mandato. Talvez ele, FHC, que anda meio sumido, possa nos indicar o caminho das pedras que nos leve a sair do caos. Mas, pensando bem, existe mesmo caos? Ou seria mais uma onda de terror espalhada por aqueles que fazem do capitalismo uma marionete macabra para assustar os pobres espectadores?
Liberdade de mercado, livre iniciativa, isso tudo não é novo. Ainda na Revolução Francesa, no fim do século XVIII, tais ideais eram veementemente defendidos. Isso, na realidade, refletia nada mais do que o próprio interesse daqueles que encabeçaram o episódio, ou seja, a burguesia. A partir dessa noção de liberdade e de iniciativa própria, o mundo caiu no conto do vigário. As pessoas passaram a aceitar a riqueza para poucos e a pobreza para muitos como um fatalismo social e quase natural. Não é incomum ouvirmos as pessoas dizerem que o mundo é assim mesmo, como se Deus, na gênese da criação, tivesse determinado isso como uma fórmula matemática.
Estamos vivendo a Grande Depressão 2 ou a continuidade da primeira quase cem anos depois? Ora, sendo parte da primeira ou a segunda isoladamente, a verdade é que a crise atual não foi a primeira e tampouco será a última. O capitalismo é assim mesmo. Ele foi arquitetado para viver de sobressaltos, de ondas de colapso e regeneração. Quem o programou fê-lo de forma muito eficiente. Engana-se quem pensa que o capitalismo ruiu. Não. Ele não ruiu. Ele está mais forte do que nunca. Ele está, digamos, gripado. Daqui a pouco, ele começa a convalescer e volta a malhar nas academias de ginástica do Tio Sam. É lá que ele encontra seu refúgio; é lá que ele mantém a blindagem de que precisa; é lá que ele tem “arautos” doutores para defendê-lo, seja em Harvard ou em Princeton, doutores copiados pelos “sábios” tupiniquins.
José Saramago, como sempre genial, definiu muito bem, quando esteve no Brasil recentemente, quem são os homens que fazem o capitalismo e que patrocinam a crise, quem são os grandes empresários, banqueiros e investidores que amedrontam o mundo. Para o mestre português, todos esses homens não passam de criminosos. Saramago realmente está certo, mas é preciso acrescentar algo à sua definição: esses homens não passam de criminosos privilegiados, pois, na hora da bonança, esnobam o Estado, mas, na hora do desespero, estendem-lhe as mãos e, o que é pior, são atendidos. O papai Estado realmente é generoso. Dá o dinheiro e, de quebra, ainda oferece o pirulito para adocicar-lhes o sorriso.





Francisco Atanagildo Melo Silva
(Graduado em Letras pela UnB, revisor de textos oficiais e estudante de Direito da UFT)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Descrição inicial de um micro-pseudo-psico-conto

Conta-se que na Baviera e ao mesmo tempo num lugar qualquer no desdenhoso caminho do século passado vivia a sua constante morte um sábio ignorante das facilidades do mundo. Constantes eram os relatos das improcedentes questiúnculas levantadas pelo eminente pensador em seus devaneios de volta pra segura casa de sua loucura natural.
Uma vez, enquanto atravessava a ponte natural de sua derradeira adolescência a caminho do deserto da maturidade, vislumbrou no sacrossanto rio dos sangues toda a veemente violência da experiência ao capturar e subjugar ingênuas utopias e incautos sonhos. Daí certamente se arremeteria de cabeça numa pedra de sal não fosse a sua sábia covardia que sempre o impedira dos gestos mais veementes que certamente o transformariam em herói ou mártir. Não nascera pra ser mártir.
Não acreditava em nada depois da morte, nem mesmo em caixão. Não, não me refiro ao metafísico, às condições sobre-humanas, às questiúnculas que ninguém voltou além para nos contar. Ele acreditava que nada, nem as idéias, os gestos sobreviveriam à morte. A morte é como deve ser: derradeira e definitiva.
Era, agora, um homem sem sonhos. Um ser desesperançoso, incapaz de esperar bonança ou desgraça. Um ser que nunca mais sequer cogitaria avaliar se era alegre ou triste. Era o que simplesmente era, nada mais (ou menos) que isso. Vivia com imenso desdém, mas a morte, então, nada lhe importava.

Segunda descrição de um micro-pseudo-psico-conto
Nascia em inspiradora agonia, o traste daquele pequeno ser. Tergiversava umas primeiras estrofes do êxtase e angústia que se configuram a caminhada de cada vivente. Nascera tal qual os outros. Com dois olhos, embora esbugalhados. Uma boca, embora desabitada. Duas narinas e orelhas, embora assoberbadas. Poucas e pequenas mudas de cabelo habitavam sua planície cranial superior.
Ressabiava dele a impressão de nítida soberba, superioridade inexpugnável de seus defeitos ante a fragilidade de nossas virtudes. Mostrava-se umbilicalmente egoísta, coisa de gênio. Urrava com a arbitrariedade de um ditador todos os seus proclamas de satisfação de seus desejos.
Sabíamos que dali viria um grande líder. Talvez não o prestimoso ditador que se apresentava por ali, talvez não o demagogo que facilmente nos comprava com os seus largos, falsos e hipócritas sorrisos. Talvez o primeiro líder insosso. Percepções todas errôneas ao tentar classificá-lo com uma constância inexistente na raça humana. Ninguém merecia tais rótulos. Ninguém conseguiria ser tão ditador e demagogo quanto ele. Assim termina o segundo pedaço dessa micro-história.

Sublime vida indigesta - uma história que nada tem a haver com o todo
Notavelmente havia passado a fase de mais alta indigência e agora distribuía indulgências, não porque o seu deus havia determinado, mas porque era parte de seu livre-arbítrio. Caminhava estradas sem volta em direção a lugar nenhum que conhecesse. Tropeçava em afiadas pedras que lhe dilaceravam a carne e deixava parte de si pelo caminho como indícios de sua indubitável existência.
E assim era feliz não de uma risada larga, mas de uma incompletude notavelmente instável. Devorava a tudo e a todos que encontrava pelo caminho em sua mente compulsória, como se saber fosse uma febre. Lia, relia, desvirtuava o cotidiano ao deixar suas marcas onde não poderiam ter estado. Vivia em estado de letargia. Dos poucos que conheceram garantem que este morreu de indigestão literária.

História Inóspita
Quando nascera tudo o que sabia, sua única certeza, é que não queria estar por ali. Toda aquela comodidade, aquela inebriante beleza, lhe causava repugnância. Mas, já que estava naquele mundo tudo o que restava era crescer e aparecer. "Que idiota, cresceria num mundo tão bonzinho", pensava ele enquanto degolava um pescoço de frango recentemente cozido ao molho madeira. Mas lhe restava alguma? Repito, lhe restava alguma alternativa? Não. A não ser que surgisse um novo mundo ou ele fosse tão metódico em sua desesperança que pudesse o criar... Sua vida se resumiria em nascer, crescer e morrer. Não deixaria nenhuma herança senão sua metódica desesperança à qual todos os seus ascendentes renegariam.

Giordano Maçaranduba